9.6.10

O que é hermenêutica?

O que é hermenêutica?

A hermenêutica é a teoria ou a arte da interpretação. Ela surge, enquanto filosofia, como desenvolvimento das hermenêuticas jurídica, bíblica e literária e tem seu apogeu na metade do século XX. Apregoa, em breves linhas, que a verdade é fruto de uma interpretação. Se, antes, era uma teoria que ensinava através de metodologias como interpretar textos, agora, como filosofia, a hermenêutica significa um posicionamento diante do problema do ser e da compreensão que dele possamos ter.
Existe uma extensão no âmbito da hermenêutica que vai da interpretação de textos até a compreensão do ser em geral, ou seja, compreensão do mundo humano. Do texto ao ser; da metodologia à ontologia. A hermenêutica como ontologia caracteriza o ser com a lingüisticidade e com a temporalidade.
Para a hermenêutica a linguagem adquire um papel fundamental, especialmente após a chamada reviravolta lingüística (linguistic turn) ocorrida no século XX. No entanto, diferentemente de uma análise lógica e gramatical da linguagem ou de uma análise lingüística, enquanto ciência geral dos signos, a hermenêutica tenta compreender o acontecer da linguagem na sua unidade e genuinidade.
Quando falamos do ser, das coisas, de nós mesmos, estamos sujeitos aos efeitos da história e à tradição lotada de palavras, narrações, mitos, textos, enfim, que substanciam nossa visão da realidade e que, no conjunto, constituem o ser. Assim, existe algo antes de nós que nos domina. Pensamos em nós, pensamos o que outros pensam de nós e também pensamos nos projetos futuros. Ser é linguagem e é tempo. Ser é evento, é princípio. Ele se dá, acontece e manifesta-se lingüisticamente. É um apelo dirigido ao homem e ao qual ele (cor)responde. Não existiria ser sem o homem; da mesma forma que não existiria o homem ser o ser.
Qual a relação do homem com esse ser que acontece como linguagem e no tempo? Essa relação acontece através da pré-compreensão: o processo de desenvolvimento da interpretação.
Se o homem está jogado no fluxo da linguagem, ou seja, no conjunto lingüístico-temporal da tradição, e se o ser é aquilo no qual estamos desde sempre jogados, isso significa que não existe a neutralidade e que jamais encontramos as coisas diretamente. Sempre teremos a intermediação e os condicionamentos lingüístico-culturais. Assim, a pré-compreensão antecipa nosso conhecimento da realidade. E o ser nos ajuda nesse conhecimento já que nos predispõe à realidade. Se o homem se coloca o problema do ser é porque já dispõe de uma compreensão vaga e mediana do ser – essa é a pré-compreensão. A pergunta acerca do ser só é possível porque já temos uma certa direção ou indicação.
O círculo hermenêutico, que também caracteriza a compreensão, significa o constante mover-se do já compreendido ao compreendido; da pré-compreensão à compreensão. Interpretar significa entrar constantemente nesse círculo e encará-lo não como um limite negativo ao conhecimento, mas como sua condição.
O círculo hermenêutico é uma das muitas “provocações” da hermenêutica ao conhecimento científico tradicional, o qual não aceita essa circularidade simplesmente para evitar problemas lógicos. O círculo hermenêutico fica ainda mais claro quando consideramos que somente dentro de uma totalidade de sentido previamente projetada algo singular aparece como algo. A interpretação como resultado da compreensão circular pressupõe, como condição de possibilidade, o círculo hermenêutico.
A interpretação enquanto resultado da pré-compreensão também é linguagem e também é tempo, já que acontece no tempo e depende do que lhe é oferecido pelo tempo. A interpretação é dirigida ao ser. No entanto, é impossível conhecê-lo de modo exaustivo, total e definitivo. Toda interpretação, justamente por ligar-se à linguagem e ao tempo, será histórica, relativa e transitória. Isso é o que chamam na filosofia contemporânea de consciência histórica. O homem sempre está implicado no ser ao qual dirige sua interpretação. Essa interpretação visa sua situação hermenêutica sempre incompleta, histórica e nunca autotransparente, como se fosse uma verdade clara e distinta, necessária e universal!
A interpretação pressupõe uma alteridade, uma diferença. Sempre estará presente algo que nos é estranho e distante. A interpretação visa justamente diminuir essa estranheza e essa distância, a qual pode ser histórica, cultural ou psicológica. Todo um conteúdo ético ingressa na hermenêutica a partir dessa consideração anterior, ou seja, a da tolerância, do diálogo, do ouvir e interpretar aquilo que é distante e estranho.
Enfim, a interpretação tem duas características que nunca poderão ser afastadas: a pertença e participação daquele que interpreta e a distância, alteridade e diferença daquilo que se interpreta. Desse modo, a irredutibilidade da existência que interpreta aos objetos do mundo natural, bem como sua singularidade de ente privilegiado que se coloca o problema do ser levam toda a problemática da hermenêutica a um deslocamento, qual seja, o deslocamento do âmbito psicológico-existencial (Kierkegaard e existencialismo) e do âmbito epistemológico (Dilthey e historicismo) ao âmbito da ontologia existencial, ao âmbito do ser considerado como linguagem e como tempo. A ontologia existencial vê o homem e as coisas imersos no ser e por ele constituídos. Cada evento será, portanto, uma individualidade irredutível e não integrável em esquemas especulativos e filosóficos.
O ser lingüístico e temporal é a alteridade e a diferença; a compreensão relativa e transitória liga-se ao ser através da pertença, da pré-compreensão e do círculo hermenêutica; e o resultado disso é a verdade como fruto de uma interpretação. Sendo a interpretação incompleta e sempre irredutível, foi lançada à hermenêutica a acusação e o estigma de um paradigma relativista. No entanto, geralmente quem a acusa de relativista ainda está submerso numa tradição que trabalha com dualismos e que pressupõe, contra o relativo, algo constante, uma essência duradoura, algo universal, etc.
Mesmo enfrentando essa acusação, a hermenêutica ainda visa restituir a dignidade e a profundidade ao trabalho do pensamento, da filosofia. No entanto, essa tarefa é perigosa num contexto de “fim” e de destruição da filosofia. Se a hermenêutica fosse relativista, ela não se importaria ainda com as tarefas impostas à filosofia em tal contexto. Então, como dar dignidade à filosofia num contexto historicista, pluralista e perspectivista da verdade, principalmente depois da dissolução do hegelianismo? É possível um pluralismo não relativista da verdade?
A hermenêutica atual, seja teológica, histórica, das ciências do espírito ou relacionada com a problemática fundamental da própria filosofia, deve ser analisada a partir do contexto de problemas de toda a filosofia moderna. As questões da filosofia moderna, quando lançadas no quadro de referência da hermenêutica, são ampliadas e aprofundadas. Por isso que alguns autores inseridos na tradição da hermenêutica defendem uma posição “pós-moderna”.
Uma das questões da filosofia moderna, talvez a principal delas, é a teoria do conhecimento, epistemologia, gnoseologia e sua relação com o problema da autofundamentação do conhecimento filosófico. Quando lançada no quadro da hermenêutica, a tradição filosófica do racionalismo, do empirismo e do idealismo adquire uma outra formatação. Depois da “destruição” dessa tradição, no sentido positivo dado por Martin Heidegger, ou depois da “desconstrução”, no sentido de Derrida de ressaltar os dualismos paradoxais da modernidade, essa tradição adquire um novo sentido revolucionário para o âmbito do conhecimento.
Seja como for, a interpretação torna-se a porta de entrada para novas possibilidades de pensamento e da própria filosofia, muito além do idealismo e além do objetivismo científico (positivismo). Assim, a hermenêutica trata do problema da verdade e das novas formas, contornos e tarefas da própria filosofia.
Os autores principais da hermenêutica são: Scheleiermacher, Dilthey, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Pareyson, Paul Ricoeur, Jacques Derrida, Gianni Vattimo, Bultmann, Barth, Fuchs, Ebelling, Hanna Arendt, Jonas, Löwith, O. Marquard, R. Bubner, dentre vários outros.
Por Fabrício Carlos Zanin
Fonte: Instituto de Hermenêutica Jurídica

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