23.4.10

Uma bela fundamentação sobre Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

Embargos Infringentes Nº 70013592357 do TJRS
Fundamentação utilizada na decisão do relator sobre o caso concreto.
Discute-se nestes Embargos Infringentes do julgado a viabilidade ou não de instaurar-se ação penal contra pessoa jurídica, quando a imputação diz respeito a crime contra o meio ambiente, previsto na Lei nº 9.605, de 12-2-1998. O confronto de idéias está não só no plano da dogmática penal clássica e da dogmática penal moderna, mas igualmente no plano das alterações das relações em mundo globalizado e das ficções jurídicas, também chamados entes morais, que assumiram dimensões e proporções tais que, na verdade, comandar aqueles que parecem comandá-las. A grandiosidade de tais entes é tal que não se sabe quem efetivamente as comanda e controlam aqueles que as dirigem temporariamente. Os grandes conglomerados são comandados pela força invisível dos acionistas (leia-se capital), a exigirem resultados positivos a qualquer custo. Permanece no cargo quem lhes oferece esses resultados; aos incompetentes o olho da rua é o caminho. Embora sinistra, a lógica é esta: o lucro, sem este não haverá progresso, quer da empresa, quer daqueles que eventualmente a administram. Sobre estes, presente sempre está essa força invisível, mas real.

Essa lógica funciona em qualquer empresa, quer seja de grande ou de pequeno porte.

2.1. Nesse contexto é que se debate a responsabilidade criminal da pessoa jurídica desde a antiguidade, representando, nos dias atuais, uma lenta evolução histórica, em que se observam três fases com uma certa clareza. Da Idade Antiga à Idade Média predominaram as sanções coletivas, remotas precursoras da responsabilidade das empresas de nossos dias. Após a Revolução Francesa, com o advento do liberalismo, de cunho iluminista, a nova ideologia extinguiu as sanções às corporações adotando medidas individualistas e garantidoras, baseadas nos princípios da legalidade e da individualização das penas. A partir do século XX, no entanto, paralelamente às idéias de um direito penal baseado na culpa individual, surge um vigoroso movimento criminalizador das condutas de empresas que não pode ser ignorado dada sua relevância internacional (Sérgio Salomão Shecaira, in “Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica”, p. 147).

O problema da responsabilidade penal da pessoa jurídica sempre girou em torno da teoria da ficção e da teoria da realidade objetiva, também chamada de orgânica ou da vontade real.

A primeira tem origem no direito canônico, prevaleceu até o século IX e teve em Savigny seu principal defensor. O núcleo dessa teoria é a de que somente o homem é capaz de ser sujeito de direitos. A pessoa jurídica é uma criação artificial da lei para exercer direitos patrimoniais. Obtém sua personalidade por uma abstração. A realidade da existência da pessoa jurídica se funda sobre as decisões de um certo número de representantes que, em virtude de uma ficção, são consideradas como suas, mas que só podem ter efeito em matéria civil, mas nunca em relação ao direito penal (Sérgio Salomão Shecaira, obra cit. pp. 85/86).

A segunda (teoria da realidade objetiva ou teoria orgânica ou teoria da vontade real) tem base diametralmente oposta à da ficção. A pessoa não é somente o homem, mas todos os entes dotados de existência real. Os seguidores de Gierke, principal nome dessa escola, ao lado de Zitelman, sustentam que as pessoas jurídicas são pessoas reais, dotadas de uma real vontade coletiva, devendo ser equiparáveis, como seres sociais que são, às pessoas físicas. Excetuando-se certas relações que por sua natureza são incompatíveis com tais pessoas jurídicas, sua capacidade é em tudo equivalente à do homem. Ela tem capacidade de querer e de agir, o que faz por meio de seus órgãos, da mesma forma que o ser humano comanda com sua cabeça seus membros para executar suas ações. Aquiles Mestre, discutindo essas idéias, afirma que se trata de seres coletivos dotados de uma vontade real, não havendo impedimento para que tais entes dirijam suas finalidades contra normas proibitivas da lei penal (Sérgio Salomão Shecaira, obra cit.p.87).

Não obstante essa teoria tenha sofrido certo desgaste pelas críticas a que foi submetida, acentua Sérgio Salomão Shecaira:

... inescondível que a pessoa jurídica não é uma ficção, mas um verdadeiro ente social que surge da realidade concreta e que não pode ser desconhecido pela realidade jurídica. O Estado, pois, defere a certos entes uma forma, uma investidura e um atributo, tornando juridicamente real a existência desses seres pessoais.

Não é por outra razão que a maior parte da doutrina nacional reconhece que as pessoas morais têm o mesmo subjetivismo outorgado às pessoas físicas (na doutrina nacional, com algumas variantes, têm essa posição Vicente Ráo, Clóvis Beviláqua, Washington de Barros Monteiro e Silvio Rodrigues, dentre outros) (obra cit.pp.87/88).
Aos críticos da teoria da responsabilidade penal da pessoa jurídica, responde Sérgio Salomão Shecaira, assim como o fez o Juiz Federal Fábio Bittencourt da Rosa em seu voto, no julgamento do mandado de segurança trazido à colação pelo eminente relator da apelação crime, ora embargada, perguntando:

Além disso, como justificar, no que concerne à própria essência da reprovação, que se possa punir administrativamente, ou mesmo civilmente, uma pessoa jurídica por um ilícito civil ou administrativo? Não estaríamos reprovando alguém que, também aqui, não tem consciência nem vontade? Não seria uma burla de etiquetas permitir a reprovação administrativa e civil por um crime ecológico (por exemplo), mas não uma reprovação penal? E mais, essa reprovação no plano civil – por algo que no fundo é a mesma culpa – não limitaria a possibilidade de defesa da própria empresa, que não teria os instrumentos normalmente assegurados pelas normas processuais para exercício de seus direitos (devido processo legal, ampla defesa, contraditório etc.)?

Mostra ainda que a vontade e os sentimentos dos homens se dissolvem no total do sentimento do grupo, o qual é diferente dos elementos particulares que o compõem. Essa perspectiva dicotômica encontra respaldo na natureza qualitativamente distinta da ação da pessoa jurídica, que denomina, por questão de clareza, “ação institucional”, embora atue o ser humano tanto na execução como na elaboração da decisão institucional. Eis o que diz: Na realidade, “os sentimentos dos homens se dissolvem no total do sentimento do grupo, o qual, necessariamente, é diferente dos elementos particulares que o compõem. É um sentimento novo que se forma, peculiar a uma entidade abstrata, e que, muitas vezes, está em franca hostilidade com o sentimento pessoal de uma das suas células componentes. Verifica-se então que este último, o sentimento pessoal, capaz de provocar ações individuais no indivíduo desligado do grupo, desaparece e cede lugar a outro, ao sentimento coletivo, que é, também, capaz de provocar ações. Porém, como ambas as ações, a individual e a coletiva se executam, objetivamente, por meio do homem, acontece que este poderá executar alguma, pela qual não seja responsável individualmente, porque ela é o resultado de uma necessidade coletiva” (Franco, Afonso Arinos de Mello, “Responsabilidade Criminal das pessoas jurídicas, p. 53, Graphica Ypiranga, 1930).
Esse raciocínio de Afonso Arinos permite pensar em uma vontade, não no sentido próprio como se atribui ao ser humano, resultante da própria existência natural, mas sim em um plano sociológico, eis que a existência da empresa decorre de sua formação surgida no seio da sociedade que a legitima. É nesse contexto (e só nesse contexto) que a empresa tem uma vontade, uma vontade pragmática, que desloca a discussão do problema da vontade individual para o plano metafísico.

O ponto de partida dessa perspectiva dicotômica se apóia na natureza qualitativamente distinta da ação da pessoa jurídica que, por razões de clareza, pode ser denominada “ação institucional”. É evidente que o ser humano atua tanto na execução como na elaboração da decisão institucional.
O componente individual não jaz separado do objeto da análise social, mas, ao contrário, seu tratamento compõe o entranhado de cada um dos conceitos vetoriais integradores da unidade. Esse novo esquema, com duas vias de imputação em face do ato delitivo protagonizado por um ente coletivo, pode ser denominado sistema de “dupla imputação” por encarar a pessoa jurídica como unidade independente da pessoa humana. Tem-se dessa forma, um conceito de vontade distinto, que se materializa em uma “ação institucional”(grifei).

Sobre o assunto, a doutrina francesa assim se expressa: “A pessoa coletiva é perfeitamente capaz de vontade, porquanto nasce e vive do encontro das vontades individuais dos seus membros. A vontade coletiva que a anima não é um mito e caracteriza-se, em cada etapa importante de sua vida, pela reunião, pela deliberação e pelo voto da assembléia geral dos seus membros ou dos seus Conselhos de Administração, de Gerência ou de Direção. Essa vontade coletiva é capaz de cometer crimes tanto quanto a vontade individual(grifei)” (Merle, Roger, VITU, André, Traité de droit criminel...p.778-9, 1988) (obra cit.pp.94/95).

2.2. Nessa linha, que é a orientação recomendada pelos congressos internacionais de direito penal, desde o 2º Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Bucarest, em 1929, até o XV Congresso Internacional de Direito Penal, realizado no Rio de Janeiro, em 1994, o Brasil adotou constitucionalmente a responsabilidade penal da pessoa jurídica na defesa do meio ambiente e do consumidor (arts. 225, § 3º, e 173, § 5º, respectivamente), a qual deu efetividade por meio das leis ordinárias, no caso a Lei nº 9.605, de 12-02-1998.

Com efeito, penso que a discussão é apenas teórica, de cunho doutrinário, especulativo, mas nunca a respeito da aplicabilidade da lei, que se não pode tangenciar a pretexto de contrariar a dogmática penal clássica ou velha teoria da ficção, segundo a qual só o homem é capaz de ser sujeito de direito.

No plano da realidade jurídica, a questão está superada, sendo a lei muito clara nas suas disposições, responsabilizando criminalmente tanto o agente humano quanto o ente jurídico, atribuindo a um e outro sanções adequadas. Por óbvio não há que se falar em inconstitucionalidade, por algo que a própria constituição previu. Também não se quer dizer que no texto constitucional está subentendida a expressão respectivamente, pretendendo com isso dizer que as sanções penais são destinadas a pessoa física e as administrativas a pessoa jurídica.

Queiram ou não, certo ou errado, prático ou não, o Brasil adotou a criminalização da pessoa jurídica, como reconhecido pela jurisprudência, na sua maioria, bem como pela doutrina (Sérgio Salomão Shecaira, obra cit.fls. 114 a 119) . E ainda que assim não fosse, é o que está expresso na Constituição e na lei que lhe deu efetividade.

Finalizando, reporto-me, mais uma vez, ao pensamento de Sérgio Salomão Shecaira:

A Constituição brasileira, inescondivelmente, adotou a responsabilidade penal da empresa. Ela o fez nos arts. 173, § 5º, e 225, § 3º. É, portanto, para esses casos que se recomenda a responsabilização das empresas no plano jurídico-penal. Não obstante alguns autores ainda não admitirem seu reconhecimento, qualquer que seja o critério adotado, com uma interpretação literal, lógico-sistemática ou teleológica, histórico-comparativa ou evolutiva, sempre há de se concluir pela consagração da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos dispositivos mencionados. Tal reconhecimento constitucional implica, no âmbito infraconstitucional, na discussão concernente ao concurso de pessoas. Em se tratando de crimes com responsabilidade da pessoa jurídica, por definição (eis que um dos requisitos é a existência do poderio da empresa contribuindo para a prática delituosa) haverá co-autoria. É impensável haver responsabilidade coletiva sem a co-autoria da pessoa individual, em face da relevância daquela conduta para o reconhecimento do crime da pessoa coletiva e desse co-autor para a execução do crime. (obra cit.p.149).

Oportuno, ainda, registrar, como o faz Paulo Affonso Leme Machado, que o acolhimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica na Lei nº 9.605/98 mostra que houve atualizada percepção do papel das empresas no mundo contemporâneo. Nas últimas décadas a poluição, o desmatamento intensivo, a caça e a pesca predatória não são mais praticados só em pequena escala. O crime ambiental é principalmente corporativo.

Ainda que a pena cominada ao crime ambiental e a sanção da infração administrativa no tocante à pessoa jurídica guardem uma igualdade, a necessidade de se trazer para o processo penal a matéria ambiental reside principalmente nas garantias funcionais do aplicador da sanção. O Poder Judiciário, a quem caberá aplicar a sanção penal contra a pessoa jurídica, ainda tem garantias que o funcionário público ou o empregado da Administração indireta não possuem ou deixam de ter.

Um comentário:

  1. Anônimo23/11/11

    Excelente Dr silveira parabéns pelo trabalho, é claro direito e educativo. Também coaduno o pensamento de que a pessoa jurídica deve responder com base na tese da realidade real, tendo por base que a atividades desenvolvida pela pessoa jurídica
    é fruto volitivo dos atos dos seus dirigentes dissociável da mesma.Manoel Messias bacharel em Direito. Montes Claros MG.

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